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Özgecan Aslan voltava para sua casa de ônibus quando Ahmet Suphi Altindoken, o motorista, tentou abusar dela. A estudante de 20 anos lutou mas o seu agressor, furioso por sua resistência, a esfaqueou antes de finalmente abusar dela, amputá-la de ambas as mãos e queimá-la para evitar deixar qualquer traço de DNA. No seu crime de extrema brutalidade, Ahmet Suphi Altindoken foi ajudado por dois cúmplices, entre eles o seu pai. Os três homens foram presos na segunda-feira, 23 de fevereiro. Este assassinato, considerado bárbaro pela população turca, reuniu várias indignações. As mulheres turcas temem cada vez mais por sua vida. Muitos crimes são denunciados às autoridades todos os dias. O assassinato de Özgecan Aslan surgiu como a gota d'água, o sinal para a sociedade turca.
Durante o enterro de Özgecan Aslan, as mulheres desafiaram uma norma religiosa: carregar o caixão até o cemitério é uma tarefa tradicionalmente masculina. Mas as mulheres presentes no funeral gritaram que nenhum homem tocaria e sujaria o corpo da defunta. As mulheres carregaram então o caixão e enterraram Özgecan Aslan – o que é no entanto proibido pelo imã.
A estudante tornou-se o símbolo da raiva das mulheres turcas. Entre os dias 14 e 16 de fevereiro, milhares de pessoas desceram às ruas para mostrar a sua insatisfação. Foram mais de 15 000 manifestantes em Mersni no dia 18 de fevereiro. Seguindo a mesma lógica, vários apelos foram lançados nas redes sociais para que outras vítimas de abusos e de assédio sexual, físico ou moral, quebrem a lei do silêncio e o tabu social. A hashtag #sendeanlat (#contevocêtambém) juntou vários relatos de mulheres contando as suas histórias ou descrevendo os recursos utilizados para evitar estas situações.
A violência contra as mulheres multiplicou-se nos últimos anos
Abaca Press – Oezgecan, a vítima “estopim” das manifestações
A morte de Özgecan Aslan despertou e reacendeu a consciência sobre o fenômeno que se tornou recorrente demais na Turquia. Homens desfilaram de saia em Istambul no dia 21 de fevereiro com o objetivo de denunciar e de condenar a violência contra as mulheres. Em 2014, a agência independente Bianet, usando cada ano como fontes relatos das mídias locais e nacionais, contaram 281 mulheres mortas pelas mãos de homens. Este número sobe para 1134 em relação aos cinco últimos anos. Esta agência observou que 70% dos assassinatos de mulheres são cometidos por membros da sua família. Só em janeiro de 2015, 26 mulheres foram assassinadas. Associações de defesa de mulheres denunciaram falhas do sistema judiciário turco que estão mais sujeitas a justificar os agressores do que proteger as vítimas.
As manifestações das duas últimas semanas tomaram contudo um rumo político, incriminando o governo islamo-conservador. O ministro turco da Família e das Políticas sociais, Ayşenur Islam, prepara o lançamento de um plano de ação a nível nacional que terá como objetivo lutar contra a violência contra as mulheres. Ele também prometeu reforçar as campanhas de sensibilização contra a violência para com as mulheres. Kemal Kılıçdaroğlu, chefe do partido de oposição Cumhuriyet Halk Partisi justificou o aumento da violência cometida contra as mulheres pela “moral” e pela “mentalidade” religiosa do Partido da Justiça e do Desenvolvimento (AKP) que reina sobre o país desde 2002. Ministros do governo pediram, além disso, o restabelecimento da pena de morte. Para Ceren Belge, da universidade de Concordia em Montréal, “o governo foi obrigado a condenar os tratamentos violentos feitos contra as mulheres mas ao mesmo tempo continua insultando os que protestam e denegrindo as mulheres. Assim, Recep Tayyip Erdogan proferiu insultos homofóbicos contra os homens que desfilaram de saia contra os assassinatos das mulheres.”
Convém lembrar o lugar e o status da mulher na sociedade turca e antigamente otomana. A organização social otomana enquadrava as mulheres em um tradicionalismo patriarcal rígido. Somente as funções biológicas de reprodução eram então reconhecidas às mulheres. Em outras palavras, os direitos civis da mulher assim como o seu status social imposto pela ordem jurídica religiosa eram extremamente limitados. Diante destes direitos limitados, as mulheres se organizaram rapidamente. Na segunda metade do século 19 a conscientização feminista cresceu na Turquia com o objetivo de obter a igualdade dos direitos civis e políticos entre os sexos. As mulheres obtiveram o direito de voto em 1934, onze anos antes da França. E durante as eleições de 1935 dez mulheres foram eleitas deputadas. O lugar das mulheres na Turquia conheceu vários progressos positivos desde o início dos anos 2000. Os quinze últimos anos foram marcados por importantes avanços. Em 2001 o novo código civil implantado na Turquia deu às mulheres um status de igualdade com os homens, especificamente no contexto matrimonial.
Importantes reformas permitiram a renovação do Código Civil e do Código criminal em particular em termos de violência doméstica e de abuso. A igualdade entre os gêneros foi pela primeira vez institucionalizada. Durante os movimentos sociais de 2013 contra o primeiro ministro Recep Tayyip Erdogan, as mulheres foram muito ativas, tornando-se às vezes, símbolos das manifestações. As mulheres turcas mobilizaram-se em grande parte por medo de ver os seus direitos e status social degradarem-se. Ceren Belge lembra que a questão do gênero e da igualdade entre os sexos não era uma questão importante e decisiva dentro dos movimentos de contestação. “O movimento feminista turco sempre foi muito ativo mas permanece marginalizado e dispondo de pouca audiência.” confirmou ela. Os movimentos de protestação da sociedade turca permitiram aos movimentos feministas de serem ouvidos. O povo turco conscientiza-se aos pouco com a importância de proteger os direitos das pessoas e para esta professora-assistente em Concordia “a mudança precisa operar através da sociedade turca.”
O corpo das mulheres na Turquia, um campo de batalha ideológica
A multiplicação dos discursos de diferentes ministros do governo de Recep Tayyip Erdogan, tentando definir um papel feminino, favorece a imagem da mulher como cidadão de segundo plano. Ela é então representada como um ser fraco que tem de ser protegido pelo homem. Em 2011, o ministério das Mulheres foi renomeado ministério da Família e das Políticas sociais e em 2012, Recep Tayyin Erdogan comparou o aborto a um homicídio e expressou a sua vontade de torná-lo ilegal. Convém lembrar que a interrupção voluntária de uma gravidez é autorizada na Turquia desde 1983 até 10 semanas de gestação.
O projeto de lei muito contestado na sociedade turca foi abandonado, mas em seguida, o aborto foi retirado dos serviços online propostos pelos hospitais, dificultando e complicando então o seu acesso. Em 2004 Recep Tayyip Erdogan propôs criminalizar o adultério na Turquia para obrigar a mulher a manter o seu papel de esposa fiel e leal. Erdogan tentou por várias vezes mandar de volta as mulher à sua função tradicional de renovação geracional. No dia 4 de fevereiro, o ministro da Saúde, Mehmet Müezzinoglu enfatizou o lugar natural da mulher afirmando que “a maternidade não é uma carreira aberta a todos (…) é uma carreira indiscutível e sagrada”. Dia 24 de novembro, Recep Tayyip Erdogan definiu a igualdade homem-mulher como “contrária à natureza humana.”
Em Julho de 2014, o vice-Primeiro ministro Bulent Arinç fortemente aconselhou as mulheres a não rir e nem gargalhar em publico para “conservar a sua decência em todo momento”. Diante das declarações misóginas de Erdogan, mulheres turcas além de mulheres dos quatros cantos do mundo tiram fotos alegres delas mesmas, mostrando grandes sorrisos no Twitter acompanhados das hashtags #kahkaha (#riso) e #direnkahkaha (#risoderesistência).
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A sociedade turca transformou-se nas últimas décadas mas o partido AKP ainda tenta moldar a juventude do país e voltar a uma moral religiosa tradicional. Esta uniformização dos jovens passa, entre outros, pela regulamentação dos comportamentos e mais particularmente das atitudes das mulheres. Pois a ordem moral promovida pelo AKP tem como objetivo controlar e ter influência sobre o corpo das mulheres – considerado como corpo reprodutor. Segundo Ceren Belge, Recep Tayyip Erdogan é o primeiro político turco a promover a desigualdade entre os gêneros, “o que é inaceitável e contribui a criar um ambiente doentio para a mulher. Suas múltiplas declarações misóginas criam impressão que tornou-se legítimo promover a desigualdade.”
Nestes últimos anos, o Twitter foi muitas vezes envolvido por movimentos da população turca querendo denunciar o moralismo religioso do governo além da insurgência deste último na vida privada dos seus cidadãos. É necessário lembrar que no dia 20 de março de 2014, redes sociais tais como Twitter e Youtube tinham sido censuradas – ironicamente, a censura tinha sido anunciada pelo Twitter do Recep Tayyip Erdogan. A falta de ação do governo turco diante do aumento da violência contra as mulheres é fortemente criticada pela população turca e internacional. Segundo a OCDE, 69% dos homens turcos possuem um emprego remunerado contra 28% das mulheres do país. É interessante notar que a Turquia lidera atualmente o G20 do qual um dos objetivos declarados é reduzir a diferença que existe entre os homens e as mulheres, mais especificamente em relação a emprego.