O país dos carros

Vincius Mendes (Correspondante a Sao Paulo)
22 Mars 2014



“Essa cidade acabou. Os carros invadiram tudo. Todas as construções que se ergueram privilegiaram somente as pessoas e seus carros”


“Essa cidade acabou. Os carros invadiram tudo. Todas as construções que se ergueram privilegiaram somente as pessoas e seus carros”, disse o aposentado Weimar Theodoro, de 76 anos, dentro de um ônibus preso no trânsito de São Paulo numa manhã de quarta-feira, ao Journal International. Ele abandonou a vida urbana há quarenta anos, quando a capital mais populosa do Brasil já tinha a fama de metrópole, mas era uma cidade de apenas três milhões de habitantes em um país com uma frota de inexpressivos 480 mil veículos, para morar em Peruíbe, cidade litorânea distante duas horas do local onde conversávamos. Viaja a São Paulo uma vez por mês para visitar a filha mais velha, mas sua estadia dura, em média, três dias. Weimar não sabe, mas está dentro da estatística das 55% de pessoas insatisfeitas com a estrutura urbana da maior cidade da América Latina e quinta maior do mundo, segundo uma pesquisa publicada no ano passado pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada, uma das maiores instituições de estudos sociais do Brasil. “Eu vivo no país dos carros”, esbraveja ele, antes de descer do ônibus.

Desde a saída de Weimar para Peruíbe, São Paulo se tornou um monstro motorizado: tem a maior frota de veículos da América Latina, com 7.529.208 carros cadastrados no sistema estatal de trânsito em setembro do ano passado, o que significa o dobro da população do vizinho Uruguai, por exemplo, que tem 3,5 milhões de habitantes. Se colocados em uma fila única, os carros da cidade somariam 42 mil quilômetros, o que possibilitaria uma volta ao redor da Terra. O crescimento de veículos dentro da cidade também é um dos mais avassaladores em comparação com a taxa do país, com cerca de 200 mil novos automóveis por ano rodando por suas ruas, o que faz com que a metrópole brasileira seja responsável por 9% da frota de veículos do Brasil, que tinha 79.261.065 carros em julho deste ano, segundo dados do Departamento Brasileiro de Trânsito. O estado de São Paulo, do qual a cidade é capital, tem mais veículos emplacados do que os estados do Rio de Janeiro, Minas Gerais e Rio Grande do Sul juntos, que abrigam as outras grandes metrópoles brasileiras (Rio de Janeiro, Belo Horizonte e Porto Alegre), que possuem 19.768.849 automóveis somados, quase três milhões de diferença para os 24.027.252 que o estado de São Paulo abriga sozinho. Além disso, é a região do país que tem o maior número de indústrias automobilísticas: quatro, com projeção de mais sete fábricas instaladas nos próximos anos.

“MOBILIZAÇÃO” URBANA

Os números excessivos de São Paulo, no entanto, começaram a pesar nos ombros dos responsáveis pelas decisões. A discussão sobre os gargalos das grandes cidades brasileiros começou em 2007, quando o Brasil foi escolhido pela FIFA para organizar a Copa do Mundo de 2014. A maior parte das propostas neste período foram para a construção dos sistemas VLT (Light Rail), adotado em alguns países europeus, como a Dinamarca e a Alemanha, e o BRT (Bus Rapid Transit), que já existe em algumas capitais sul-americanas. Porém, nenhuma obra deste tipo foi inaugurada no país até o momento. Em junho deste ano, com as manifestações da população revoltada com o aumento da passagem dos ônibus em São Paulo, o governo da presidente Dilma Rousseff se mobilizou e já anunciou investimentos de R$ 50 bilhões de reais nos próximos quatro anos em transporte público. No caso do estado de São Paulo, o governo local pretende injetar R$ 45 bilhões de reais até 2015, valores que não devem mudar o panorama até a Copa do Mundo, que vai acontecer no país dentro de oito meses. Em outubro, o jornal Folha de S. Paulo, um dos maiores do país, organizou um seminário sobre mobilidade urbana e concluiu este é o momento para o Brasil melhorar sua mobilidade urbana, por causa do crescimento econômico do país nos últimos anos, o interesse dos investidores estrangeiros nas obras estruturais e a proximidade do Mundial de futebol, no que vem, e as Olimpíadas de 2016.

Há no Brasil, neste momento, 22 projetos de transporte público sobre trilhos tramitando nos poderes executivos e legislativos. Se forem concluídos, o país praticamente vai dobrar sua malha ferroviária de passageiros até 2018, com 1.136 quilômetros a mais do que o sistema férreo atual. No entanto, dos cinco projetos de mobilidade sobre trilhos desenvolvidos em função dos jogos da Copa do Mundo de 2014, apenas dois ainda têm alguma chance de ser concluídos a tempo da Copa: os VLT’s de Fortaleza, na região nordeste, e Manaus, conhecida como a capital da Amazônia, na região norte. Os dados são animadores mediante um cenário como o divulgado pela Associação de Transporte sobre Trilhos do Brasil, em junho, que mostrou que apenas 12 das 63 grandes regiões brasileiras possuem algum tipo de sistema de transporte sobre trilhos, um dado que confirma a histórica desigualdade de investimentos em malha ferroviária do Brasil: como os principais portos do país ficam no sudeste, onde São Paulo e Rio de Janeiro estão localizadas, as principais ferrovias brasileiras foram construídas nesta região, com o único propósito de escoar as produções de soja e café, que continuam sendo produtos de exportação importantes para a economia nacional. Neste cenário, o transporte de passageiros e as outras partes do país ficaram sem outras opções de transporte terrestre que não os veículos, colaborando com o aumento da produção de carros, a venda desenfreada nas principais cidades e os consequentes trânsitos que dão sentido ao título desta reportagem.
O BRT é a opção preferida dos políticos porque tem a melhor relação custo-benefício: transporta 30 mil passageiros por hora em cada sentido e o quilômetro linear custa R$ 40 milhões. O metrô transporta mais do que o dobro de passageiros (80 mil), mas o quilômetro consome R$ 500 milhões por causa do custo da terra para desapropriações. Mais do que investimentos, a população das grandes cidades brasileiras se acostumou a usar o automóvel para se locomover, principalmente nas idas e vindas do trabalho. Em São Paulo, das 8,7 milhões de pessoas que vão trabalhar todos os dias, metade usa o carro, segundo pesquisa do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística. “Não será uma transição fácil. Sempre tem caos nas mudanças de sistemas. Por isso recomendo o tratamento de choque. Sem ele, você não corta o vício em carro”, disse o engenheiro Willian Aquino, à Folha de S. Paulo, responsável pela construção do sistema VLT em dos bairros do Rio de Janeiro.

PREFERÊNCIA AO ÔNIBUS

A preferência pelo automóvel no Brasil é tanta que, quando o prefeito de São Paulo, Fernando Haddad, do mesmo partido da presidente Dilma Rousseff, decidiu ir para o trabalho de ônibus, numa quinta-feira de outubro, ganhou destaque nos veículos de imprensa e nas redes sociais. Ele demorou 30 minutos para ir de sua casa, na região sul da cidade, até a prefeitura, que fica no centro. A iniciativa de Haddad, no entanto, foi além da busca pela imagem de dirigente humilde: ele é o responsável pela principal mudança no trânsito de São Paulo nos últimos anos: priorizar o corredor de ônibus. Em sete meses foram criados 224 quilômetros de faixas exclusivas. A mudança surtiu efeito rapidamente, praticamente dobrando a velocidade dos ônibus, de 13 para 25 km por hora. Todas as semanas surgem novas faixas nas principais avenidas da cidade, pegando até alguns motoristas de surpresa. São Paulo tem alguns exemplos próximos, como Curitiba, capital do estado do Paraná, quatro horas de distância, que é considerada “cidade-modelo” por seu sistema de ônibus independente, distribuído por toda a cidade por meio de “tubos” de passageiros, e Medellín, segunda maior cidade da Colômbia, que foi pioneira na criação do sistema que Curitiba adotou. “O uso irresponsável do carro e sua supremacia em detrimento a outros meios de transporte são os maiores erros no direcionamento das políticas públicas para o trânsito da cidade. Estou otimista com o futuro”, disse Fernando Haddad no seminário sobre mobilidade, em outubro.
O momento brasileiro favorece a melhoria de vários setores e, entre eles, a mobilidade urbana. Ainda que o país seja o quarto maior mercado de automóveis do mundo, é possível equilibrar o uso consciente dos veículos oferecendo transporte público de qualidade e tão eficiente quando o carro particular. É a oportunidade para, enfim, não permitir que a opinião do senhor Weimar Theodoro continue sendo a da maioria da população de uma nação que pretende ser uma potência mundial num futuro próximo.

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