Brasil: Manifestação pacífica vira campo de batalha após repressão da polícia militar

Os nossos correspondentes em São Paulo
16 Juin 2013



Protesto em São Paulo contra o aumento da tarifa dos ônibus é violentamente reprimido; jornalistas são atingidos e governo mantém posicionamento; comunidade internacional condena violência do Estado.


Kety Shapazian, Twitter @KetyDC
Kety Shapazian, Twitter @KetyDC

No início da tarde, o ministro da justiça do governo Federal afirmava que “num estado de direito, é legítima a manifestação, é legítimo que as pessoas expressem sua opinião, mas não é legítimo que pratiquem atos de violência, atos de vandalismo”. Diante disso, o quarto protesto contra o aumento da passagem em São Paulo foi claramente uma resposta às críticas feitas também pelos jornais e pelos governos municipal, estadual e federal.   

    

No início da manifestação, ainda em frente ao Teatro Municipal, tudo seguia pacífico, exceto pelas inúmeras revistas feitas pelos policiais prendendo qualquer um que estivesse com algo que considerassem suspeito, inclusive vinagre. A substância é utilizada para se proteger dos efeitos das bombas de gás. O intuito era claro: haveria repressão e era preciso deixar os manifestantes o mais indefesos possível das investidas da tropa. Pela manhã, o tenente-coronel Marcelo Pignatari, comandante das operações policiais, afirmava que não deixaria os manifestantes “à vontade pela cidade”. Após as últimas manifestações, o prefeito da cidade Fernando Haddad e o Governador do Estado, Geraldo Alckmin, reiteraram que não negociariam com vândalos. Neste último protesto, a postura dos manifestantes mudou e a manifestação seguiu organizada, sem qualquer violência. Menos de dois quilômetros depois, quando os manifestantes já estavam há cerca de 30 minutos caminhando, a palavra de ordem do grupo de mais de dez mil pessoas, que o Governador definiu como “grupo pequeno, mas violento” era um apelo: “sem violência”.   

    

Ali, no meio dos pedidos por não violência, a Polícia Militar (PM) passou com a tropa de choque entre os manifestantes. No meio da multidão foram dados tiros e bombas de gás foram jogadas. O empurra-empurra da multidão era inevitável e por pouco não houve uma tragédia com pessoas pisoteadas. O intuito da Polícia Militar era claro: evitar que os manifestantes chegassem até a avenida Paulista, principal via da cidade e considerada coração econômico da capital com a sede das principais empresas e escritórios no país. Para isso, passaram a lançar mais bombas de gás de tal forma que a população passou a se dispersar em pequenos grupos de centenas de manifestantes. Como resposta à repressão da polícia, barricadas de lixo com fogo foram montadas. A polícia continuava a jogar bombas de gás para acuar os pequenos grupos e a ação, que deveria ser para dispersar, encurralava os manifstantes. “Nessas horas você perde a coragem ou o que quer que seja e pensa 'quero ir pra casa'. Mas eu não tive essa opção, não tinha por onde ir que não tivesse fumaça”, contou a repórter Amanda Previdelli, em sua conta no Twitter. Foram muitos os relatos de pessoas feridas e não conseguindo respirar. "Quando tacaram bomba na praça, eu subi para fugir do gás denso, mas não deixaram a gente fugir. Atrás de mim caiu uma bomba, só vi a fumaça. Virei, na minha frente caiu outra, cheguei a vê-la bem perto", relatou Amanda, e ainda: "o que fizeram com o povo ao meu redor foi desumano". Mais de cem pessoas ficaram feridas. Pelo menos duas estações de metrô do centro da cidade, Anhangabau e Santa Cecília, foram fechadas pela polícia.   

    

Os diversos grupos continuaram tentando chegar até a avenida Paulista, já bloqueada pela polícia. Ali, uma cena de guerra estava montada. Um ciclista quase foi derrubado por um soldado que queria revistá-lo. Os estudantes que saiam de uma faculdade eram revistados um a um. Jornalistas foram agredidos e a tropa de choque seguia em uma caçada por manifestantes já dispersos. Um grupo de pouco mais de vinte pessoas que gritava em coro “sem violência” teve como resposta balas de borracha e bombas de gás. As imagens nos telejornais se inverteram e o prefeito Fernando Haddad voltou atrás sobre as ações policiais. No final da noite, ele criticou a ação da polícia: “a imagem que ficou foi de violência policial”, afirmou em coletiva logo após os protestos. Geraldo Alckmin reafirmou que os manifestantes são violentos. Ambos reiteraram que não vão reduzir a tarifa do transporte em São Paulo, mesmo com um novo protesto já marcado para segunda feira. Cerca de 23 mil pessoas já confirmaram presença em menos de 24 horas.   

O MPL e a reivindicação pela tarifa zero


O Movimento Passe Livre, principal articulador dos protestos contra o aumento das tarifas do transporte coletivo em diversas cidades brasileiras, teve sua origem em uma revolta popular espontânea, na cidade de Salvador, capital da Bahia, em 2003. A partir deste episódio, que ficou conhecido como “A Revolta do Buzu”, o movimento toma proporções nacionais e, no Fórum Social Mundial de Porto Alegre, em 2005, institucionaliza sua organização em torno da concepção do direito de ir e vir como um direito básico que deve ser assegurado pelo Estado, assim como a educação e a saúde pública.



Nesse sentido, o movimento reivindica a mudança do modelo de transporte público privado, que atualmente funciona sob a forma de concessões, para um modelo público que possa garantir o passe livre para toda a população. Bastante heterogêneo em sua composição e em termos de concepções teóricas e práticas, ainda que tenha como característica comum a reivindicação da ação direta nas ruas, o MPL parece contar com membros que flertam desde com o marxismo e a organização partidária até com o anarquismo.



Em São Paulo e em outras capitais, a bandeira da tarifa zero e a organização contra aumentos no preço do transporte público encontra um grande espaço de ressonância principalmente entre a juventude. E a composição dos manifestantes é absolutamente heterogênea. Seria um equívoco afirmar que se trata de uma onda de protestos oriunda da classe média – como tentam sustentar alguns veículos da imprensa brasileira. 

  

Soma-se à atuação do MPL as juventudes organizadas nos partidos de esquerda brasileiros, além da massa de independentes que participam das manifestações. Um cenário complexo e perfeito para a desinformação em um país sem tradição de grandes mobilizações populares, em comparação com países vizinhos como Chile e Argentina, por exemplo, e que conta com uma polícia mundialmente reconhecida por sua atuação violenta.  

Ataque à imprensa


Em meio aos protestos e embates da última semana, a mídia ganhou um capítulo à parte. De um lado, uma cobertura que evidencia o vandalismo e a violência dos manifestantes, pouco citando a operação violenta da PM. De outro, prisões e agressões que repórteres e fotógrafos sofreram enquanto tentavam, de alguma maneira, acompanhar o que acontecia. 

  

A Secretaria de Segurança Pública de São Paulo (SSP) ainda não contabilizou o número de jornalistas detidos nos quatro atos do Movimento Passe Livre. No entanto, sabemos que profissionais dos veículos Terra, Aprendiz e Carta Capital foram levados à delegacia. Piero Locatelli, repórter da Carta Capital, foi detido por portar vinagre. Em seu relato no site da revista, o jornalista traz trechos de gravações, onde também mostra a agressão a mulheres por parte da polícia. Locatelli foi solto na noite de ontem, e deixou claro que o fato de ser jornalista amenizou sua situação.  

  

Sete jornalistas da Folha de S. Paulo foram agredidos pela polícia. Dois deles levaram tiros de borracha nos olhos.  Um fotógrafo da agência Futura Press foi atingido da mesma maneira e corre o risco de perder a visão. Segundo Amanda, em certo momento, quando a imprensa estava misturada aos civis, o Choque soltou bombas de gás e começou a abordar as pessoas. “Um deles veio atrás de mim. Eu gritei que era imprensa. Achei que ele fosse me levantar pelo braço. Lembrando da dica que ouvi de um colega, gritei que era da ‘grande mídia’. O moço me soltou, mas nem sei se ele me ouviu”, afirmou. 

  

Nas primeiras manifestações, a mídia, o governo e boa parte da população afirmavam, em coro, sua oposição aos protestos. Os atos de vandalismo eram inaceitáveis. As manchetes dos principais jornais da cidade evidenciavam as depredações e danos ao patrimônio público paulistano, minimizando o número de militantes e o tamanho da manifestação. Também foi dado destaque às declarações do prefeito Fernando Haddad, e do governador Geraldo Alckmin, que continuam firmes em suas posições de “não negociar com vândalos” e não reduzir a tarifa do transporte.  

  

Nas redes sociais, entretanto,  houve uma imensa propagação de fotos, vídeos e relatos de manifestantes que estavam presentes nos protestos, declarando que todo o vandalismo e violência foram incitados pela repressão violenta da PM. Depois dos acontecimentos de ontem, pesquisa realizada pelo Datafolha, um dos principais institutos de pesquisa do país, revelou a reviravolta: 55% dos paulistanos se dizem a favor dos atos de protesto, ainda que 78% ache que os manifestantes foram mais violentos do que deveriam. Apenas hoje, depois do quarto ato - o mais violento deles - é possível vislumbrar na mídia relatos sobre a repressão e violência policial, que transformaram as ruas da cidade em um campo de batalhas. 

Reações no mundo


Em nota divulgada ontem  , durante os protestos, a Anistia Internacional demonstrou preocupação com o aumento da violência na repressão aos protestos e com o discurso das autoridades, "sinalizando uma radicalização da repressão e a prisão de jornalistas e manifestantes, em alguns casos enquadrados no crime de formação de quadrilha". Ressaltou que o transporte público acessível é de fundamental importância para que a população possa exercer seu direito de ir e vir. "É fundamental que o direito à manifestação e a realização de protestos pacíficos seja assegurado", afirmou. 

  

Reportagem do The New York Times de hoje destacou que os protestos ocorrem em um momento delicado para os líderes políticos já que eles estão lidando com preocupações sobre a inflação alta e o crescimento econômico lento, além de "estarem tentando promover o Brasil como destino seguro e estável antes da Copa do Mundo de 2014 e Olimpíadas de 2016", que serão realizadas aqui. O jornal El País destacou "uma nova noite de protestos, com cenas de guerra", com um balanço final de mais de 250 detidos e cerca de 50 feridos. E encerra: "a esperança é que essas manifestações sirvam para fazer crescer a democracia e enriquecer o país, em vez de empobrecê-lo". 

Um relatório divulgado pelo Conselho de Direitos Humanos da ONU em 30 de maio de 2012, há mais de um ano atrás, pediu ao Brasil maiores esforços para combater a atividade dos "esquadrões da morte" no país. A Organização também pediu ao governo brasileiro para trabalhar no sentido de suprimir a Polícia Militar, acusada de numerosos homicídios extrajudiciais e destacou a necessidade de o Brasil garantir que todos os crimes cometidos por policiais sejam investigados e que se combata a impunidade dos crimes cometidos contra ativistas de direitos humanos. 

São Paulo, população inflada e transporte urbano


São Paulo é a cidade mais populosa da América Latina. Com 11.2 milhões de habitantes somente na capital (e outras 8 milhões na Região Metropolitana), essa metrópole tem os meios de transporte saturados pelo grande número de pessoas que se deslocam até o centro, região que concentra serviços e infra-estrutura de transporte, para trabalhar e estudar. Segundo artigo publicado em 2011 pela relatora especial da Organização das Nações Unidas para o direito à moradia adequada e professora da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da USP (FAU – USP), Raquel Rolnik,  os paulistanos gastam uma média de 2 horas e 42 minutos todo dia em deslocamentos diários; em um ano, o que corresponde a 27 dias perdidos em congestionamentos.  

  

O excesso de carros é fator importante na formulação do trânsito na cidade. Em 2011, o Departamento de Trânsito de São Paulo (Detran) diagnosticou uma frota de 7 milhões de veículos na capital, dos quais 5,11 milhões são carros. Proporcionalmente ao número de habitantes (11,3 milhões), a média em São Paulo é de um carro para cada 2,2 pessoas e congestionamentos que chegam a 115 Km no fim da tarde. Hoje, a maior metrópole do país possui apenas dez corredores de ônibus, sendo que o último foi inaugurado há sete anos. Segundo matéria publicada no jornal Diário de S. Paulo no ano passado, a administração estadual investiu R$ 4,3 bilhões nos últimos cinco anos na CPTM (Companhia Metropolitana de Transportes Metropolitanos, que gera o sistema de ferrovias na cidade) e destinou R$ 6,5 bilhões para anéis rodoviários e vias expressas como o Rodoanel, a Marginal Tietê e Avenida Jacu Pêssego, privilegiando assim obras viárias e o transporte individual. Longos deslocamentos, altos custos e falta de espaço em ônibus e metrôs fazem da mobilidade um problema de saúde crônico da maior metrópole do país. Se compararmos as vias públicas da cidade a veias e artérias de um ser humano, pode-se considerar São Paulo uma cidade doente, prestes a enfartar. 

  

Outro fator importante para a mobilidade urbana paulistana é o preço do transporte público. Em São Paulo, pagamos por cada viagem e as linhas de ônibus são operados por oito concessionárias privadas que atendem diferentes   regiões da cidade. As concessionárias são geridas pela SPTrans, autarquia municipal que gere o transporte público por ônibus em São Paulo Nos últimos 15 anos, o custo da passagem de ônibus triplicou na cidade. Em 1998, o bilhete custava R$1 real. preço que chegou a R$3,00 em 2011, com um aumento  (11,11%) bem acima da inflação do período (6,03%). Em 2013, o prefeito eleito, Fernando Haddad (PT-SP) anunciou o aumento do preço da passagem de ônibus para R$3,20 - aumento (6,4%) que ficou abaixo da inflação registrada nos últimos dois anos (14,4%) - o que faz São Paulo ter a passagem de ônibus mais cara do Brasil. 

  

Apesar de se tratar de uma diferença R$0,20, o aumento consumirá uma parcela maior da renda dos trabalhadores. Quem recebe um salário mínimo no Estado de São Paulo (valor de R$755, um pouco acima do salário mínimo nacional de R$678) e utiliza um ônibus e um metrô para retornar do trabalho terá um gasto de R$200, o que equivale a 26,4% de sua renda total. Segundo matéria publicada no portal UOL  , esse aumento faz trabalhadores fazerem "bicos" (atividades remuneradas realizadas por determinado período, sem vínculo empregatício) e chegarem a excluir uma refeição (lanche da tarde) para conseguir custear o uso do transporte. A insatisfação com o aumento do preço do transporte fez cidadãos organizarem protestos em diversas outras capitais brasileiras (Rio de Janeiro, Goiânia, Natal e Porto Alegre) para reivindicar a redução do custo da passagem, convocadas pelo Movimento Passe Livre, grupo presentes em diferentes estados que discute a questão da mobilidade urbana.



Escrito por Alessandra Alves, Andressa Pellanda, Bárbara Libório, Cleyton Vilarino et Túlio Bucchioni



 

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